segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

“Impossível curar… que fazer?”

Um testemunho na primeira pessoa sobre os cuidados paliativos

"Quantas vezes não coloquei eu, a mim própria, a mesma pergunta -“E agora, que fazer?”-, quando, há oito anos atrás, tomei conhecimento da gravidade da doença do meu marido e do seu prognóstico de vida limitado. Mas, passada a fase da revolta, da raiva contra o mundo inteiro, da angústia e da questionação (porquê ele e não outro qualquer), decidi interiormente que a única coisa a fazer era seguir em frente da melhor forma possível, vivendo um dia de cada vez, aproveitando todos os minutos preciosos que ainda tínhamos e não deixando que a dor antecipasse um momento que sabíamos ser uma realidade.
“A Dignidade e o Sentido da Vida, uma reflexão sobre a nossa existência”, é um livro que só li recentemente, mas que acredito ser de leitura quase obrigatória para todos aqueles que acompanham, profissionalmente ou não, doentes terminais. A referência a esta obra prende-se com o facto dela responder, do princípio ao fim, à questão levantada, mas também e principalmente porque na Unidade de Cuidados Paliativos do IPO do Porto eu vi colocados em prática todos os conceitos teóricos nela apresentados. Uma das autoras, a Drª Isabel Galriça Neto, afirma, logo nas páginas iniciais, que “cuidados paliativos, mais do que um edifício, são uma atitude”, ou seja, são uma preocupação com o doente no seu todo, corpo e espírito, e para isso ser possível são necessárias as doses certas de rigorosos conhecimentos científicos, por um lado, mas também de uma grande formação humana, por outro lado.
O doente que acompanhei era o Pedro, o meu marido, um homem de hábitos saudáveis, sem fumo e sem álcool, desportista praticante, a quem repentinamente foi diagnosticado, aos 32 anos, um osteossarcoma bastante agressivo. Este tumor, localizado no fundo das costas, provocava-lhe dores terríveis e, até ao momento da extracção, dificultava-lhe também a mobilidade. Antes e depois da cirurgia, o Pedro foi submetido a sessões intermináveis de quimioterapia e de radioterapia, durante doze longos meses, até que, durante uma consulta de grupo, nos foi comunicado que, a partir daquele momento, ele iria ser assistido pela Unidade de Cuidados Paliativos. Das muitas decisões médicas que ouvimos, esta foi uma das mais difíceis, apesar de estarmos os dois conscientes do prognóstico de vida limitado associado à doença. Como a maioria das pessoas, nós nunca tínhamos entrado num serviço daquele género e a imagem pré-concebida que tínhamos era extremamente negativa. Para nós, aquela Unidade deveria ser um espaço impessoal, frio, escuro, quase uma ante-câmara da morte, para onde eram mandados todos aqueles “por quem já nada havia a fazer”. Pelo menos era o que se sussurrava pelos corredores das consultas externas, onde todos pareciam ter medo de falar abertamente sobre o assunto, porque era (é) tabu, porque existia (existe) um estigma relativamente àquele bloco do IPO.
Naquele momento, mais do que em qualquer outra situação, quase nos deixámos vencer pelo cansaço, pelo desânimo e pela tristeza. E foi com este estado de espírito, e conscientes de que o fim estava cada vez mais próximo, que nos apresentámos na primeira consulta; mas o que aí encontrámos não se parecia em nada com o que estávamos à espera. O atendimento foi imediato, personalizado, o diálogo sobre o funcionamento daquela Unidade foi esclarecedor e as decisões deixadas, dentro do possível, na mão do doente. Este respeito pela sua individualidade, pelo seu direito de escolha, foi determinante para a empatia e para a confiança que nasceram, desde logo, entre nós e a médica assistente. O sofrimento do Pedro, naquela altura, já era imenso e as elevadas doses de morfina só o aliviavam temporariamente, mas a nível intelectual ele continuava a ser a pessoa que sempre fora e, por isso, também ele percebeu que a sua dignidade e o sentido da vida que ainda tinha para viver seriam respeitados integralmente. E, por isso, escolheu deixar-se apoiar, porque ele sabia que qualquer apoio só é produtivo quando há vontade das duas partes, vontade de dar e vontade de receber.
Seguiram-se, então, dois meses de internamento, período durante o qual aprendemos que, realmente, não havia nada a fazer para curar, mas havia ainda muito a fazer para garantir um fim de vida com qualidade; aprendemos também que é possível partir com serenidade, em boas condições, e rodeado de sentimentos positivos, como a atenção, o respeito e o amor daqueles que nos rodeiam, por muito doloroso que isso seja, porque aos 32 anos, e com um projecto de vida a dar os primeiros passos, ninguém tem consciência da sua própria finitude.
Na Unidade de Cuidados paliativos do IPO do Porto nós encontrámos um enorme respeito pelos valores éticos fundamentais de qualquer ser humano, por parte de uma equipa constituída por médicos, enfermeiros, assistente social e voluntários, todos eles sabedores de que um doente é mais do que um corpo enfermo e, por isso, precisa de apoio a nível físico, mas também a nível psicológico, a nível espiritual e a nível social. E se da primeira vez custou bastante percorrer aqueles corredores, cada vez foi custando menos, porque nós aprendemos que, afinal, havia ainda muito a fazer.
A assistência dada ao Pedro alternou sempre períodos de internamento, para controlar os sintomas da doença, nomeadamente o agravamento das dores, os curativos e a extracção de líquido do pulmão, com idas sistemáticas a casa.
Nos períodos de internamento, a preocupação de todos os que lá trabalhavam sempre foi a de melhorar a qualidade de vida do meu marido, o que passava por um tratamento dos sintomas e por um alívio da dor, mas também, e essencialmente, por uma preocupação pelo seu bem-estar psicológico e emocional. Durante a passagem dos médicos ou enfermeiros nunca faltava uma palavra de conforto ou um gesto mais carinhoso. Porque naquela Unidade de Cuidados Paliativos, felizmente, em nunca vi pressas.
Durante os dois meses em que andei por aquele serviço, senti que os que ali trabalhavam me viam de duas formas; por um lado, eu era uma espécie de colaboradora que assegurava alguns cuidados informais como os banhos e as refeições, mas, por outro lado, eu era também alvo de cuidados. E sentir que, depois de tantos meses, alguém se preocupava comigo, fez-me bem, muito bem mesmo.
Li, um dia, numa entrevista do Dr. Lobo Antunes à Revista do JN, que os doentes “querem e precisam de ser embalados”. Gostei particularmente desta imagem carinhosa do “colo”, porque penso que é isso mesmo que o doente e os seus acompanhantes precisam quando se confrontam com a sua própria fragilidade, a fragilidade de quem sofre e a fragilidade de quem vê sofrer.
Eu nunca pedi nada, mas frequentemente me era oferecida uma palavra de conforto, um sorriso simpático, uma atenção especial ou até mesmo um “simples” café. Acredito sinceramente que apoiar a família é apoiar indirectamente o doente e, por isso, a relação de ajuda que estabeleceram comigo, o “colo” onde me embalaram, ajudou-me a ficar mais forte e assim a transmitir mais força ao meu marido. Preocuparam-se, inclusivamente, com a nossa economia doméstica e, depois da morte do Pedro, disponibilizaram-se mesmo para me continuarem a apoiar durante o meu período de luto. Esta relação de ajuda permitiu-me viver aquele período da forma menos traumática possível, e sentir aquela Unidade como um oásis num sistema de saúde completamente massificado e, por isso mesmo, muitas vezes desumanizado e, também ele, doente.
A doença é um tempo de perdas: perda da confiança, perda da autonomia, perda ou abandono de projectos de vida; mas o conhecimento antecipado da perda do contacto físico com as pessoas de quem se gosta é, de todas, a mais dolorosa. No entanto, e apesar da dor provocada por todas estas perdas, a postura do meu marido perante a morte é algo de que me orgulho bastante, porque permitiu longas conversas e a satisfação de nada ter ficado por dizer. O Pedro recusou-se sempre a ficar preso numa cama, a ver-se como um moribundo, e se as pernas já não funcionavam (porque entretanto ele paralisou) funcionavam felizmente os braços, o cérebro, o coração, e havia que aproveitar o prazer da nossa companhia e o prazer que o trabalho, agora como terapia ocupacional, sempre lhe proporcionou. Posso dizer-vos que ele era ourives e que, sempre que as forças o permitiam, não dispensava uma ida à oficina de amigos para fabricar modelos únicos que nos deixou com a sua marca pessoal. E foi o que o Pedro fez até mesmo ao seu último dia.
Para esta forma de estar na vida, muito contribuiu um outro tipo de apoio que recebeu e sobre o qual ainda não falei: o apoio espiritual que o ajudou a organizar os seus sentimentos e a conseguir atingir a “sua paz interior”, apoio este que se tornou fundamental e que permitiu ao meu marido enfrentar a morte com a mesma dignidade com que enfrentou toda a sua vida. O Pedro encontrou na leitura, na reflexão e no diálogo com um sacerdote nosso amigo, o outro “colo” de que precisava e que lhe permitiu preparar-se interiormente e, até, ajudar os que estavam à sua volta a prepararem-se também.
Esta orientação espiritual, independentemente de ser prestada a título particular, como foi o caso, ou dentro do próprio serviço de saúde, o que não aconteceu porque não o solicitámos, foi determinante para o meu marido arrumar ideias e sentimentos na sua cabeça, no seu coração, e encontrar as respostas que procurava e que lhe permitiram alcançar o seu bem-estar interior. Em resumo, foi um apoio fundamental para que ele se sentisse plenamente Pessoa.
Gostava de concluir com uma palavra de esperança, dizendo que testemunhei que é possível ajudarmo-nos uns aos outros a manter a dignidade, a qualidade e o sentido da vida até ao fim, desde que nunca nos esqueçamos que os doentes são pessoas e, por isso, devem ser acompanhados por pessoas (e se a minha pessoa foi a base de tudo, não posso deixar de referir o “colo” dado por outras pessoas, os familiares e os verdadeiros amigos) e, finalmente, não nos podemos esquecer de que os doentes devem ser tratados por pessoas profissionais, como aquelas que o Pedro encontrou na Unidade de Cuidados Paliativos do IPO e que lhe transmitiram a segurança e o bem-estar necessários para ele dizer, poucos minutos antes de nos deixar,
“ Leva-me para os Cuidados Paliativos.
É lá que eu me sinto seguro.
É lá que eu me sinto bem.”


Zilda França

5 comentários:

Anônimo disse...

Este testemunho é.....(é muito difícil descrevê-lo)...arrepiante.
Ainda bem que as pessoas apesar de todos os obstáculos na vida ainda conseguem enfrentá-la com coragem. E esta coragem quando é conseguida com o esforço de medeicos, familiares, amigos verdadeiros e todas as pessoas que nos dão força, é mais rapidamente conseguida. Esta luta pela vida e esta dignidade são únicas.

Parabéns ao IPO pelo excelente trabalho realizado. Digo isto porque apesar destes médicos não conseguirem curar a doença do senhor( não estava ao alcance deles), não deixaram de o ajudar nem de lhe prestar atenção.

É bom quando percebemos que ainda há pessoas boas, competentes, compreensivas e com sentimentos.

Grande testemunho...é maior em termos de riqueza moral do que em letras.

Carina

Anônimo disse...

Embora já tenha lido este testemunha à algum tempo, só agora me sinto capaz de o comentar.
Obrigada por me mostrares que é possível ir até ao fim com dignidade, mesmo nestas circunstâncias...! A minha ideia do que é "morrer com dignidade" era outra...ainda bem que a alteraste...não imaginas o quanto isso é importante para mim!

Anônimo disse...

Grande testemunho, gostei de ler =P

Beijinho
Fred

Anônimo disse...

Grande testemunho, gostei de ler =P

Beijinho
Fred

Anônimo disse...

Caso arrepiante que nos faz ver que não dominamos o mundo e que há algo bastante importante que é a saude....

impressionante***


sofia...